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sexta-feira, 26 de maio de 2017

Para meu amigo Mário

Para começo de conversa, se este texto lhe parecer confessional ou piegas demais, largue-o assim que sentir isso.

Estou escrevendo essa história para fazer saber quantos queiram saber, e tentar, de alguma forma, exorcizar um pequeno fantasma que existe em mim.

Este texto é sobre uma pessoa morta. Mas que continua muito viva. Ela não era imortal. Mas eterna. O que são duas coisas diferentes.

O ano é 1995. Eu tinha 16 anos de vida e estava prestes a me formar no Ensino Médio. Normalmente, turmas de formandos fazem festas e diversas outras atividades para angariar fundos para sua formatura. No nosso caso, naquele ano, tínhamos uma barraca de comidas típicas de festa junina numa festa que ocorria na rodoviária da cidade. Naqueles tempos, nos anos 90, essas festas – que em alguns lugares são chamadas de quermesses, enchiam porque não acontecia muita coisa na cidade pequena. No caso, a cidade é Nilópolis, no Rio de Janeiro.

Na barraca da turma, deveria haver um rodízio, uma escala de pessoas que seriam responsáveis pela barraca, pelas comidas, pelas bebidas e pelo dinheiro. Se hoje em dia isso já é muita responsabilidade para mim, imagine com 16 anos. Mas o destino quis que eu fosse um dos primeiros na escala. Assim, antes que a festa enchesse e o movimento aumentasse eu estaria livre da responsabilidade. Mas nem todo mundo cumpre com suas tarefas e quis o destino que a pessoa que me renderia se atrasasse. E acabei ficando na barraca e vendo o movimento aumentar. De maneira que duas pessoas que ficassem na barraca não poderiam atender muito bem o público.

Assim que as próximas pessoas chegaram, 15 ou 20 minutos antes do seu horário, eu e a outra pessoa que estava comigo, saltamos daquele barco sem se importar muito com quem estivesse chegando ainda sem entender como era o funcionamento da barraca.

Pois bem, aqui começa a história que eu quero contar.

No momento em que consegui me livrar daquela tarefa chata, no palco da festa começava a passagem de som da primeira banda que “alegraria” a noite da rapaziada. Quem já teve o desprazer de estar numa passagem de som, principalmente quando o público está presente, sabe o tédio que é. Aquele festival de “alô som”, “S, S, Som”, “1, 2, 3, testando”, “S, S, Som!” é um porre! Enquanto essa pasmaceira rolava, notei um sujeito careca e de óculos redondos à la John Lennon. Ele instruía uma baterista nervosa e ansiosa, que deveria estar tocando para o seu primeiro grande público. Deu tempo de eu pegar uma pegar bebida e quando sorveria o primeiro gole, saiu dos autofalantes os primeiros acordes de uma grande mudança na minha vida: a música “In Bloom” do Nirvana.

Imediatamente eu fiquei mesmerizado. Até então, eu só conhecia dois ou três caboclos que conheciam Nirvana. Eu já era o “roqueiro maluco” da minha área. E jamais imaginei que numa quermesse alguém poderia tocar a música que me fez prestar atenção no Nirvana.

Eu não me lembro mais nada daquela noite. Mas guardei bem a cara do sujeito que tocava e cantava. Numa cidade de 9 km quadrados, você sempre esbarra com alguém que você já viu antes.

Onze anos se passaram.

Eu já estava formado e comecei a dar aulas num colégio público em Nilópolis. Certo dia, no turno da noite, ao entrar na sala dos professores, - lugar pouco frequentado por mim, encontrei aquele sujeito que tocou na rodoviária. Não podia acreditar. De certa forma, ele era quase um herói da minha juventude. Obviamente, eu não falei com ele de imediato. Eu sou tímido e tenho Horror de gente “paga pau”.

Alguns meses se passaram até que eu tivesse coragem de me apresentar. Quando esse dia chegou, eu conheci um dos caras mais fantásticos, inteligente e engraçados que a vida já colocou no meu caminho. Seu nome: Mário.

Contei a ele a história acima narrada. Ele com uma voz tranquila disse que nunca tinha conhecido ninguém que estivesse naquele show. Em 1995, ninguém conhecia a banda New Wave Hookers (Dê um Google, dá para achar coisas deles por aí). Em 2006, eles eram cult no underground carioca.

Também lhe disse que era músico e que estava descontente com os rumos que a banda que eu tinha estava tomando. De imediato ele falou “então vamos tocar só nós dois! Tô a fim de fazer umas coisas diferentes e suas ideias vem bem a calhar!”.

Daquele momento em diante, fizemos um duo musical que ele chamava de Peixe Solúvel. Minhas tardes e noites de sábado eram na casa dele. Criando música. Éramos dois guitarristas. Mas a criatividade do Mário era algo que não conheci em muitos músicos. Rodávamos samplers de bateria e outras coisas, em laptops que tinham 516 megabytes de memória. Ficávamos os dois compondo, ao vivo, cada ideia que nos vinha à mente. Para mim, o jogo era fácil: Mário tinha muito mais background que eu. Muito mais letras e músicas compostas que eu. Ele foi o único cara que conheci e toquei, que digo que escrevia melhor que eu. Muito melhor.

Eu tinha muitas ideias. Ele também. Eu queria, de todo coração, fazer de tudo para que aquilo que tocávamos, muitas músicas dele, algumas minhas, chegasse ao maior número de ouvidos. Mas nós éramos de gerações diferentes. Ele era 7 anos mais velho que eu. Ele gostava de fazer as coisas com calma. Como um ourives ou joalheiro, que sabe desbastar e polir cada peça em que trabalha. Queria deixar cada música do seu jeito. Tanto que inúmeras músicas, tem inúmeras versões, uma para cada formação de banda com quem ele tocou. Um dia, eu me enchi de fazer as coisas no tempo dele. Também me mudei de cidade e passamos a nos ver menos. Mas sempre nos falávamos. Sempre. Isso sempre foi algo bom na nossa relação: eu nunca consegui ficar chateado com ele.

Entre idas e vindas, toquei com ele até 2010. Mais precisamente 11 de setembro de 2010. Mário carinhosamente me chamava de “pedreiro do rock”. Por muitos anos, antes de ter um pedal board, carreguei os pedais da guitarra dentro de caixas de ferramentas. Para ensaiar em estúdio, ele carregava uma porrada de coisas. Nesse dia, fizemos um ensaio com três guitarristas. Cada um se revesando no contrabaixo. Ele estava feliz. Eu mais ainda. Depois de muito tempo sem tocar juntos, a afinação e o timming entre nós não havia mudado e continuávamos sinérgicos.

Voltei pra casa feliz. Muito feliz. Minha mulher nunca havia apoiado tanto uma banda minha, quanto apoiava o que eu fazia com o Mário.

Uma semana se passou e não consegui ligar para ele, para marcarmos o próximo ensaio.

Outra semana. Mais uma. Um Mês. Dois.

Telefone chamava e ele não atendia. Mensagens e recados no Facebook. E nada.

O tempo foi passando sem eu entender o que havia se passado para ele nunca mais ter entrado em contato comigo.

Precisamente no dia 6 de março de 2011, deixei um último recado no Facebook dele. Na esperança de ter uma resposta. Só obtive uma resposta no dia 12 de maio daquele ano, data de aniversário dele. Mas não foi o Mário que me respondeu, mas um sujeito chamado Rodrigo Sabatinelli. Me mandou uma mensagem me informando que Mário havia morrido.

A primeira reação foi ficar gritando “O que? O que? O que?”. Minha mulher que estava se preparando para ir trabalhar, ficou atônita me perguntando o que havia ocorrido e eu só ficava repetindo “como assim? Como assim?”.

Ele me contou que Mário havia morrido no ano passado. De um mal súbito. Aparentemente, comendo um sanduíche em casa, assistindo a um filme com a namorada. Ele nunca foi atleta. Não bebia. Não fumava. Tinha uma vida frugal. Não tinha hábitos perigosos como os meus. Não andava de moto, por exemplo. Mário se arriscava muito pouco.

Na época eu não sabia mexer no Facebook como sei hoje, nem o Facebook tinha os recursos que tem hoje. Assim, ao longo dos anos fui descobrindo que ele morreu exatamente no sábado seguinte ao nosso último ensaio. Naquele dia, não quis ensaiar: estava com preguiça. Ficou em casa. Enquanto via um filme, ao lado da namorada, teve um ataque do coração e não chegou vivo ao hospital.

Durante muito tempo sofri. Sofria em pensar o quanto o mundo perdeu em não conhecer o que o Mário escrevia e tocava. Poucas pessoas tiveram acesso à sua produção. Mas muita gente conheceu quem ele era. Hoje em dia, sofro menos. A gente vai aprendendo a acalmar o coração e sentir menos saudades. Mas minha playlist no celular, tem algumas das músicas que mais me tocavam. Várias letras são compostas de ironias torpes sobre ele mesmo. Quem o conheceu sabia do seu humor negro involuntário, de inteligência extraordinária.

Hoje chegou o dia em que eu gostaria de fazer a homenagem que nunca fiz. Mas também botar pra fora o que sempre senti.

Na internet, existem poucas coisas do que ele fez. Aqui, são algumas coisas que fizemos e que ele fez com outras pessoas. A faixa 3 é muito doída pra mim. Preste atenção na letra.

Mas esse post merece terminar com a música que eu demorei certo tempo para entender todas as motivações dela. Hoje entendo.

Obrigado Mário.



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